Tuesday, August 29, 2006
Ele Sempre Está Onde Me Perco
Não sei quem sou, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenha.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor, eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada (?), por uma suma de não-eus sintetizados
num eu postiço.
Fernando Pessoa
Interrogação De Nada
Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Fernando Pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.
Fernando Pessoa
Fadas... Crianças... Deuses...
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.
Fernando Pessoa
Monday, August 28, 2006
Sobre As Coisas Que Se Quer...
Não quero rosas, desde que haja rosas.
Quero-as só quando não as possa haver.
Que hei-de fazer das coisas
Que qualquer mão pode colher?
Não quero a noite senão quando a aurora
A fez em ouro e azul se diluir.
O que a minha alma ignora
É isso que quero possuir.
Para quê?...
Se o soubesse, não faria
Versos para dizer que inda o não sei.
Tenho a alma pobre e fria...
Ah, com que esmola a aquecerei?...
Fernando Pessoa, 7-1-1935.
Sobre Chuva
Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.
Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.
Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração.
Fernando Pessoa
Sunday, August 27, 2006
Captações de uma leitura antiga
ph Pablo Valentim
Começo a conhecer-me. Não existo. Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, Ou metade desse intervalo, porque também há vida... Sou isso, enfim... Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo. É um universo barato.
Fernando Pessoa
Começo a conhecer-me. Não existo. Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram, Ou metade desse intervalo, porque também há vida... Sou isso, enfim... Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo. É um universo barato.
Fernando Pessoa
Saturday, August 19, 2006
Pessoa Para Mendigo
Era um dia comum.
Sol forte, poucas nuvens, ar parado.
Uma flor seca estremecia sob os pneus do caminhão de lixo e Mendigo fumava um toco de cigarro que trazia uma marca de batom. Olhou para o céu claro, fuçou os bolsos em busca de nada e atirou um pouco de nada no asfalto quente.
Mendigo sorriu para a menininha que abraçava a babá, e ela devolveu-lhe o sorriso com a mesma boca banguela. Dentes, pra que dentes, quando não se tem o que mastigar?
Atravessou a rua e parou em frente à fonte. Água limpa. Se puser as mãos me prendem. Se beber, me internam.
Sede, fome, solidão.
Mendigo caminha lentamente pela praça. Lixo. Sempre tem algo. Olhando pros lados, em busca de um socorro que não vem, Mendigo lança as mãos sujas no cesto e cata...
Um livro.
O que faz um livro tão bonito no lixo? Pra que serve a beleza do livro? Não enche barriga. A não ser a de quem escreveu, pensa Mendigo.
Folheia distraído as páginas e pára numa frase. Pensa e sorri amargo. Porque diabos ele tinha que abrir este livro?
Senta num banco e começa a ler as frases em voz baixa e gutural de quem não fala há muito. Um cachorro lambe-lhe os pés quase desnudos e cheira o fétido odor da pobreza mais absoluta que vem das suas vestes.
Mendigo lê.
O relógio da igreja marca as horas que passam sem que ele perceba. E o dia quase termina junto com o livro. Algumas páginas arrancadas deixaram-no curioso frases grifadas com tinta cor-de-rosa e uma dedicatória na última página: "Para Elvira, com amor do seu, sempre seu, Artur.", deixaram-no emocionado.
Acha bonito o amor.
Sente a pequena fisgada no centro do seu corpo e sabe o que significa.
Fome. Mendigo tem fome no corpo, mas sente a alma alimentada. Levanta-se, marca uma frase com um palito de fósforo queimado, guarda o livro no bolso e segue. Pensando no que leu, Mendigo revê sua vida em quadros a correrem pela sua cabeça... A infância desgraçada pela atitude do pai, a mãe se prostituindo, a violência de casa, da rua, do orfanato, o esforço para estudar, o roubo que não fez, a injusta prisão,
o emprego no cais, a mulher que amou e o traiu, a bebida que destruiu seu fígado, seus sonhos, os filhos que o renegaram, a rua, a rua, a rua... amarga e doce rua, com seus postes, seus pontos de ônibus, seus passageiros, caridade, caridade, caridade... a sopa no fim da noite,
o toco de cigarro no chão, a lapada de cana que ia pro santo, o frio, o sono, a polícia, o sinal, o sinal,
O SINAL !!!
Grita alguém, mas Mendigo não vê, e o caminhão de lixo que trazia em seus pneus uma flor seca e estremecida, range freios mas é tarde, é tarde, é tarde... Mendigo abre os olhos e nada sente ou vê. Leva a mão ao peito e suspira uma dor tão grande de deixar essa vida bandida que era a sua... Justo agora, que sabia ...
A mão suja cai na poça de lama, e um rapaz vê as páginas do livro virando ao sabor da leve brisa que agora passa, pega o livro e lê a frase grifada em carvão:
"Venha o que vier, nunca será maior do que minha alma".
Sorri e joga o livro no chão morno.
"Pessoa para mendigos... Faltava essa".
E em algum lugar do Universo, um Mendigo é recebido por um homem magro, de óculos , com um chapéu na mão,
e segue feliz, ouvindo as poesias das páginas arrancadas...
albanegromonte, em 2001
Homenagem pessoal ao Grupo de Debates Sobre Literatura e Arte Andarilhos Das Letras
Álvaro de Campos
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A sutileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.
Essas coisas todas
Essas e o que falta nelas eternamente ;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
-Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...
1934.
Friday, August 18, 2006
Tenho Dó Das Estrelas
Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo…
Tenho dó delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas
Como das pernas ou de um braço?
Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir…
Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão –
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
Petisco
"O meu olhar é nítido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo..."
(De O Guardador de Rebanhos)
Ricardo Reis
Eu nunca fui dos que a um sexo o outro
No amor ou na amizade preferiram.
Por igual a beleza apeteço
Seja onde for, beleza.
Pousa a ave, olhando apenas a quem pousa
Pondo querer pousar antes do ramo;
Corre o rio onde encontra o seu retiro
E não onde é preciso.
Assim das diferenças me separo
E onde amo, porque o amo ou não amo,
Nem a inocência inata quando se ama
Julgo postergada nisto.
Não no objecto, no modo está o amor
Logo que a ame, a qualquer cousa amo.
meu amor nela não reside, mas
Em meu amor.
Os deuses que nos deram este rumo
Também deram a flor pra que a colhêssemos
com melhor amor talvez colhamos
O que pra usar buscamos.
Sunday, August 06, 2006
Fernando Falando de Amor
"Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço a figura dela,
E vendo-a sempre de maneira diferente do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero sóPensar nela
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. "
Fernando Pessoa em 1930
Friday, August 04, 2006
Liberdade
Ai que prazer não cumprir um dever.
Ter um livro para ler e não o fazer!
Ler é maçada, estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal, sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa
Ter um livro para ler e não o fazer!
Ler é maçada, estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal, sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal como tem tempo, não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa
Tuesday, August 01, 2006
Dito Poético
Do Livro do Desasossego- Bernardo Soares
"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonias exibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a um filho morto."
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