Saturday, August 19, 2006

Pessoa Para Mendigo


Era um dia comum.
Sol forte, poucas nuvens, ar parado.
Uma flor seca estremecia sob os pneus do caminhão de lixo e Mendigo fumava um toco de cigarro que trazia uma marca de batom. Olhou para o céu claro, fuçou os bolsos em busca de nada e atirou um pouco de nada no asfalto quente.
Mendigo sorriu para a menininha que abraçava a babá, e ela devolveu-lhe o sorriso com a mesma boca banguela. Dentes, pra que dentes, quando não se tem o que mastigar?
Atravessou a rua e parou em frente à fonte. Água limpa. Se puser as mãos me prendem. Se beber, me internam.
Sede, fome, solidão.
Mendigo caminha lentamente pela praça. Lixo. Sempre tem algo. Olhando pros lados, em busca de um socorro que não vem, Mendigo lança as mãos sujas no cesto e cata...
Um livro.
O que faz um livro tão bonito no lixo? Pra que serve a beleza do livro? Não enche barriga. A não ser a de quem escreveu, pensa Mendigo.
Folheia distraído as páginas e pára numa frase. Pensa e sorri amargo. Porque diabos ele tinha que abrir este livro?
Senta num banco e começa a ler as frases em voz baixa e gutural de quem não fala há muito. Um cachorro lambe-lhe os pés quase desnudos e cheira o fétido odor da pobreza mais absoluta que vem das suas vestes.
Mendigo lê.
O relógio da igreja marca as horas que passam sem que ele perceba. E o dia quase termina junto com o livro. Algumas páginas arrancadas deixaram-no curioso frases grifadas com tinta cor-de-rosa e uma dedicatória na última página: "Para Elvira, com amor do seu, sempre seu, Artur.", deixaram-no emocionado.
Acha bonito o amor.
Sente a pequena fisgada no centro do seu corpo e sabe o que significa.
Fome. Mendigo tem fome no corpo, mas sente a alma alimentada. Levanta-se, marca uma frase com um palito de fósforo queimado, guarda o livro no bolso e segue. Pensando no que leu, Mendigo revê sua vida em quadros a correrem pela sua cabeça... A infância desgraçada pela atitude do pai, a mãe se prostituindo, a violência de casa, da rua, do orfanato, o esforço para estudar, o roubo que não fez, a injusta prisão,
o emprego no cais, a mulher que amou e o traiu, a bebida que destruiu seu fígado, seus sonhos, os filhos que o renegaram, a rua, a rua, a rua... amarga e doce rua, com seus postes, seus pontos de ônibus, seus passageiros, caridade, caridade, caridade... a sopa no fim da noite,
o toco de cigarro no chão, a lapada de cana que ia pro santo, o frio, o sono, a polícia, o sinal, o sinal,
O SINAL !!!
Grita alguém, mas Mendigo não vê, e o caminhão de lixo que trazia em seus pneus uma flor seca e estremecida, range freios mas é tarde, é tarde, é tarde... Mendigo abre os olhos e nada sente ou vê. Leva a mão ao peito e suspira uma dor tão grande de deixar essa vida bandida que era a sua... Justo agora, que sabia ...
A mão suja cai na poça de lama, e um rapaz vê as páginas do livro virando ao sabor da leve brisa que agora passa, pega o livro e lê a frase grifada em carvão:
"Venha o que vier, nunca será maior do que minha alma".
Sorri e joga o livro no chão morno.
"Pessoa para mendigos... Faltava essa".
E em algum lugar do Universo, um Mendigo é recebido por um homem magro, de óculos , com um chapéu na mão,
e segue feliz, ouvindo as poesias das páginas arrancadas...

albanegromonte, em 2001

Homenagem pessoal ao Grupo de Debates Sobre Literatura e Arte Andarilhos Das Letras

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