Wednesday, September 26, 2007

Se, Depois De Eu Morrer


Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,

Não há nada mais simples.

Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.

Vi como um danado.

Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.

Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.

Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.

Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas das outras;

Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.

Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.

Fechei os olhos e dormi.

Além disso fui o único poeta da Natureza.


Alberto Caeiro

Friday, September 21, 2007

Imagem

A Cadeira Do Poeta Fernando Pessoa No Seu Espaço Poético
Óleo sobre tela, Costa Pinheiro

Tuesday, September 18, 2007

Pessoa Para Crianças



Livro infantil de Amélia Pinto Pais ensina a “saborear a musicalidade” da poesia
À descoberta de Pessoa O livro «Fernando Pessoa – O menino da sua mãe», escrito por Amélia Pinto Pais para que as crianças “aprendam a saborear a musicalidade dos poemas dum dos maiores autores da literatura portuguesa”, é lançado esta semana pela Ambar. De acordo com a autora, a obra – com lançamento oficial marcado para 17 de Outubro na Casa Fernando Pessoa – começa com uma forjada autobiografia de Fernando Pessoa, que fala de si próprio às crianças, e continua com uma antologia poética, que inclui, desde os poemas escritos para os sobrinhos, até alguns do «Cancioneiro», da «Mensagem» e dos heterónimos.A intenção foi “dar uma primeira possibilidade às crianças de aprenderem, aos poucos, a saborear a musicalidade dos poemas, mesmo que não entendam totalmente. Há vários graus de entendimento e o primeiro passa pelo gostar de ouvir e de ler”, apontou Amélia Pinto Pais em declarações à Agência Lusa.Docente aposentada após 36 anos no ensino secundário, a autora, licenciada em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra, escreveu outras obras didácticas e de carácter ensaístico dedicadas a Fernando Pessoa («Para Compreender Fernando Pessoa», 1966), Luís de Camões («Para Compreender os Lusíadas», 1982, «Os Lusíadas em Prosa», adaptação para o público juvenil, entre outros), e Gil Vicente («Auto da Barca do Inferno», uma edição escolar).Amélia Pinto Pais comentou ainda que partilha da opinião de Sophia de Mello Breyner Andresen, expressa na antologia de poesia portuguesa que a poetisa elaborou para crianças, e na qual defendia que os mais pequenos “merecem o melhor”.“E o melhor que há são autores como Fernando Pessoa e Camões. São os maiores escritores da língua portuguesa, os fundamentais”, justificou, acrescentando entender – como Sophia – que “aquilo que lemos e nos agrada em criança, mesmo só pelo ouvido, aprenderemos a amar e entender melhor quando adultos”.A vida e obra do maior poeta português do século XX escrita para crianças a partir dos dez anos neste «Fernando Pessoa – O menino de sua mãe» de Amélia Pinto Pais tem ilustrações da autoria de Telma Fernandes e Pedro Leal e faz parte da colecção «À Descoberta» da editora Ambar.

Quem corre por gosto…

Para a também autora de «História da Literatura em Portugal – Uma Perspectiva Didáctica» (em três volumes, 2005), “quanto mais cedo as crianças começarem a ouvir os grandes autores portugueses tanto melhor”. “Podem não perceber os primeiros quatro versos de Tabacaria, mas vão-se familiarizando com os sons das palavras, a musicalidade da poesia”, reiterou. Tornar acessíveis às crianças as obras dos grandes escritores portugueses “não é trabalho fácil, mas quem corre por gosto...”, disse, assinalando que n´«Os Lusíadas» facilitou a tarefa o facto de existir uma história, ao contrário do que acontece na poesia de Pessoa.


Sacado do site lusitano: http://www.oprimeirodejaneiro.pt/

Thursday, September 13, 2007

PalaVrar

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

Wednesday, September 12, 2007

7-1-1935


Não quero rosas, desde que haja rosas.

Quero-as só quando não as possa haver.

Que hei-de fazer das coisas

Que qualquer mão pode colher?


Não quero a noite senão quando a aurora

A fez em ouro e azul se diluir.

O que a minha alma ignora

É isso que quero possuir.
Para quê?... Se o soubesse, não faria

Versos para dizer que inda o não sei.

Tenho a alma pobre e fria...

Ah, com que esmola a aquecerei?...


Fernando Pessoa

Excerto de


A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.


Fernando Pessoa

(deixou de ser "visto" em 30.11.1935)

Tuesday, September 11, 2007

Se Eu Não Sou Eu...


"O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente.O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada".


Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Na Noite Terrível

Starry Night, Van Gogh

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incómoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado – esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido

–Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso – e foi afinal o melhor de mim – é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;

Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro

–Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida...Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível pra mim.


Álvaro de Campos

É.


"Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura"


Alberto Caeiro

Solidão


"De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam - só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente".


Bernardo Soares-Livro do Desassossego